domingo, 21 de agosto de 2011

DOSSIÊ DEMOGRAFIA

DOSSIÊ DEMOGRAFIA
Mitos da população mundial


Epidemias, guerras, caos político, hábitos culturais... muitos fatores orientam a demografia de um país. Porém, em todas as partes, uma das principais características do século XXI será o envelhecimento da população, que pode ser estimado pelo aumento da proporção de idosos: 5,2% em 1950, 7,6% em 2010 e 16,2% em 2050
por Gérard-François Dumont
Demografia, somente tolices foram pronunciadas em seu nome...
“A humanidade tem uma natalidade desenfreada.” Não, pois há várias décadas as taxas de natalidade diminuem consideravelmente e em todos os lugares, em razão do que se convencionou chamar de “transição demográfica”, período durante o qual a população apresenta diminuição da natalidade e da mortalidade, antes muito elevadas.
“Devemos temer uma verdadeira explosão demográfica.” Podemos nos acalmar: a bomba não vai estourar. O maior fenômeno do século XXI não será o crescimento rápido da população, mas sim seu envelhecimento.
“Viveremos em um planeta esmagado pela superpopulação.” Não novamente, pois a concentração humana em pequenos territórios, induzida pela urbanização, leva ao despovoamento de outras regiões.
“Os fluxos migratórios Sul-Norte vão nos submergir.” É ignorar que as novas lógicas migratórias engendram mobilidades em todos os sentidos, entre as quais importantes migrações Sul-Sul.
Resumindo, “a população mundial” não existe: ela é um agregado sem significado, um somatório de realidades tão diferentes que usá-la significaria misturar alhos com bugalhos. Guiné e Portugal têm praticamente a mesma população (10,8 milhões de habitantes para o primeiro e 10,7 milhões para o segundo). Devemos deduzir daí que esses dois países ocupam uma posição similar na demografia mundial? Talvez não. Se os compararmos, todos os indicadores divergem: a taxa de crescimento natural da Guiné, por exemplo, é positiva (+ 3%), enquanto a de Portugal é negativa (− 0,1%).
Falar de indicadores demográficos da população mundial é apagar as dinâmicas particulares: aquelas de países com taxa de natalidade elevada e baixa expectativa de vida (como o Níger e o Mali) ou de países nos quais a taxa de natalidade é tão baixa que não compensa a taxa de mortalidade (como a Rússia e o Japão). No caso japonês, o aumento considerável da taxa de mortalidade nos anos 2000 não se deve a comportamentos de risco ou a uma deterioração do sistema sanitário, mas exclusivamente ao envelhecimento.
O mundo é composto de populações diversas, com indicadores diferentes e modos de povoamento variados, como é mostrado pelas extraordinárias variações de densidade (de 1.141 habitantes por quilômetro quadrado em Bangladesh a 5,9 no Gabão). Aqui também: considerar apenas as médias agregadas de um exemplo é condenar-se a não enxergar nada.
O século XX foi testemunha de uma evolução sem precedente: o povoamento da terra quadruplicou (de 1,6 bilhão em 1900 para 6,1 bilhões em 2000). Esse crescimento resulta da junção de quatro fenômenos. Desde o fim do século XVIII, certos países do hemisfério Norte começavam a apresentar uma queda da mortalidade (infantil, infantojuvenil e materna) que, no século XIX e depois no XX, espalhou-se nos países do Sul (na Índia, por exemplo, a partir dos anos 1920). As razões: avanços da medicina e da farmacêutica, difusão de comportamentos higiênicos e progresso técnico-agrícola que permitiu uma alimentação mais regular e variada. Em dois séculos, a porcentagem de recém-nascidos mortos antes de completar 1 ano de vida diminuiu 80% “em média” no mundo, mas ela foi dividida por cinquenta nos países mais desenvolvidos. A mortalidade de crianças e de adolescentes diminuiu de maneira ainda mais pronunciada, assim como a mortalidade materna, que trouxe como resultado uma mudança no equilíbrio entre os sexos: o sexo dito “fraco” se tornou demograficamente o mais forte – o que nunca tinha acontecido na história da humanidade.
Além disso, as pessoas idosas vivem mais tempo, em decorrência da melhora, desde os anos 1970, da medicina e das infraestruturas sanitárias. A mecanização de algumas atividades trouxe, entre outros benefícios, melhores condições de trabalho, contribuindo para aumentar a expectativa de vida, que quase dobrou em um século (de 37 anos em 1900 para 69 anos em 2010).
A baixa histórica da fecundidade provocou uma desaceleração demográfica clara: a taxa anual média de crescimento passou de uma máxima histórica de mais de 2% no final dos anos 1960 (muitos países se encontravam então em plena transição demográfica) para 1,2% em 2010. Em cinquenta anos, a população mundial aumentou 142%: de 2,5 bilhões em 1950 para 6,1 bilhões em 2000. Segundo a projeção média da ONU, a população deverá se elevar a 9,1 bilhões em 2050. Isso significa, no entanto, falar em excesso? Se esses 9,1 bilhões emigrassem para os Estados Unidos, deixando todo o resto da Terra deserto, a densidade dos Estados Unidos seria ainda inferior àquela da região de Île-de-France atualmente...

Envelhecimento inédito
O envelhecimento será o fenômeno inédito do século XXI. Ele poderá ser medido seja pelo aumento da proporção de pessoas idosas (5,2% em 1950, 7,6% em 2010 e 16,2% em 2050, segundo as previsões da ONU),1 seja pela evolução da idade mediana (24 anos em 1950, 29 anos em 2010 e cerca de 38 anos em 2050).2
Por um lado, o aumento da expectativa de vida amplia o círculo da terceira idade. Por outro, a diminuição da fecundidade reduz o efetivo de jovens; seus efeitos são particularmente importantes nos países em fase de “inverno demográfico”, nos quais a fecundidade está há várias décadas claramente abaixo do nível de renovação das gerações (cerca de 2,1 filhos por mulher em média). No caso desses países, somente uma promoção considerável da fecundidade (e não muito tardia, pois o número de mulheres em idade de procriar diminui sensivelmente) ou dos aportes migratórios de populações jovens e fecundas poderia permitir a manutenção do nível necessário para uma simples renovação das gerações.
Avalia-se o envelhecimento da população medindo a parte crescente das pessoas idosas em relação à população total. Mas é igualmente necessário medir o aumento do número absoluto de pessoas idosas de mais de 65 anos – o que chamamos de “gerontocrescimento”: 130 milhões em 1950, 417 milhões em 2000, podendo atingir 1,486 bilhão em 2050. Essa distinção entre envelhecimento e “gerontocrescimento” permite capturar as evoluções mais contrastadas, de acordo com o país. Em certos casos, esses dois fenômenos não evoluem de maneira idêntica, sob o efeito, por exemplo, de um sistema migratório atrativo para populações jovens e repulsivo para as populações idosas.
A urbanização aparece como um fenômeno importante, posto que em 2008, segundo os números das Nações Unidas (discutidos por modalidades, mas não no geral), os habitantes das cidades ultrapassaram em número a população rural pela primeira vez.3 Este é o grande paradoxo do século XXI: nunca a população mundial foi tão numerosa e nunca foi tão concentrada em espaços tão reduzidos: o mundo se “metropoliza” inexoravelmente sob o efeito de uma espécie de motor em três tempos.
O primeiro tem a ver com a predominância do setor terciário nos espaços urbanos mais populosos, que atraem uma população ativa disponível em razão do crescimento da produtividade agrícola. O segundo vem do desejo dos lares de ter um amplo leque de possibilidades de emprego, em um contexto de diversidade crescente de atividades, de mobilidade profissional desejada ou imposta, ou de pobreza no mundo rural. Enfim, as metrópoles são os territórios mais adequados à implantação de um “espaço-mundo”, facilitando muito as conexões. Além disso, elas dispõem de uma atratividade ligada a seu poder político, o qual depende de seu status institucional (capital regional, nacional, sede de instituições públicas internacionais), e às filiais estrangeiras de firmas transnacionais que se localizam principalmente nas grandes cidades.
A intensidade da concentração urbana difere muito entre diversos países: na Índia, 29% dos habitantes vivem em cidades, 33% no Congo, 73% na Alemanha e 79% nos Estados Unidos. Os fatores de explicação são muito variáveis. A alta taxa brasileira se explica principalmente pela herança da colonização, que fundou cidades encarregadas de assegurar o controle político e econômico do território e de centralizar a exclusividade dos intercâmbios com a metrópole portuguesa. A pequena taxa chinesa se deve em boa parte ao regime comunista, que durante muito tempo fixou seus trabalhadores rurais; nesse contexto, Pequim, com seus 12 milhões de habitantes, é uma capital pouco populosa em relação à importância demográfica do país. Em outros países, os conflitos desenraizaram as populações rurais, acentuando o peso demográfico de cidades como Bogotá, Amã, Calcutá ou Kinshasa.
Os países muito centralizados, como a França ou o Irã, dotaram-se de uma estrutura urbanamacrocéfala, na qual a capital política é dominante em todas as funções: econômica, financeira, universitária e cultural. Outros países, como a Espanha ou a Bolívia, tiveram uma urbanização bicéfala, dominada por duas cidades (Madri e Barcelona; La Paz e Santa Cruz); a Alemanha, por sua vez, está organizada em uma “rede urbana” mais equilibrada, que interliga diversas cidades hierarquizadas de maneira harmoniosa.

Uma paisagem demográfica inédita
Transições demográficas em curso nos diferentes países do Sul, “inverno demográfico” em certos países do Norte, envelhecimento da população, urbanização sem precedentes: eis o que desenha uma paisagem demográfica inédita. Soma-se a questão das circulações migratórias: 214 milhões de pessoas4 residem de modo permanente em um país diferente daquele em que nasceram – um número que não inclui nem refugiados nem deslocados.
Ao contrário do que diz o senso comum, as migrações são regulares e permanentes. E majoritariamente legais: hipermidiatizadas, as migrações clandestinas são estatisticamente ínfimas. A história e a geografia contribuíram para a construção de “pares migratórios” compostos de países. Eles podem se basear em uma proximidade geográfica − Burkina Faso e Costa do Marfim, Colômbia e Venezuela, México e Estados Unidos, Malásia e Cingapura, Itália e Suíça… – ou em uma história comum – Filipinas e Estados Unidos, Argélia e França, Índia e Reino Unido etc. –, enfim, relações herdadas da colonização e perenizadas, de jure ou de facto, depois da descolonização. Como no caso do movimento de urbanização, mesmo se fatores políticos (guerras, conflitos civis, regimes liberticidas) forçam a emigração, são os fatores econômicos que continuam sendo o motor principal.
No século XIX, a pobreza levou muitos espanhóis, suíços e italianos a emigrar para a América Latina. A demografia propriamente dita é um terceiro fator de migração: no século XIX, a França, em razão de uma diminuição muito precoce de sua fecundidade, tornou-se o único país europeu de imigração. No século XXI, a diminuição da população ativa em diferentes países desenvolvidos faz que se atraiam imigrantes sobretudo para cobrir um déficit de mão de obra em determinados setores profissionais.
Entretanto, a polarização entre países de emigração perdeu sua pertinência. As migrações são cada vez mais circulares: o Marrocos, por exemplo, é um país de emigração para a Europa e para a América do Norte; um país de trânsito para os migrantes da África subsaariana cujo destino final é a Europa; e um país de imigração para os migrantes da África subsaariana que acabaram finalizando – sem ter necessariamente planejado – seu percurso migratório.
Do mesmo modo, a Espanha é um país de emigração, sobretudo para as migrações empresariais para países do Norte ou da América Latina; um país de trânsito para os africanos que vão para a França; e um país de imigração do Marrocos, da Romênia ou da América andina. Para além da imagem cartográfica que poderia indicar um saldo migratório (que mascara a intensidade dos fluxos de imigração e de emigração) por país, evidencia-se hoje que a maior parte dos países assume os três papéis.

BOX
GLOSSÁRIO:
Idade mediana.Idade que divide as pessoas de um país (ou região) em
dois grupos iguais.
Classes vazias. Gerações cujos efetivos são menos numerosos que aqueles das classes de idade precedentes e seguintes.
Despovoamento.Diminuição do número de habitantes em um território.
Despopulação.Déficit de nascimentos em relação às mortes. A despopulação não gera despovoamento se o saldo migratório compensá-la.
Expectativa de vida com boa saúde. Número de anos que um grupo de pessoas pode esperar viver, em média, sem uma deficiência importante.
Gerontocrescimento. Aumento do número de idosos em determinada população.
Inverno demográfico.Situação
de um país cuja taxa de natalidade
continua a diminuir no final da transição demográfica (ver definição),enquanto a taxa de mortalidade se estabiliza – isso acentua o envelhecimento das populações num ritmo mais ou menos rápido.
Migração empresarial.Migração internacional relacionada às decisões das empresas que fazem seus empregados migrar.
Migração econômica.Deslocamento internacional de pessoas que desejam trabalhar fora de seu espaço nacional, muitas vezes motivadas por uma desigualdade entre o país de origem e o de destino.
Migração familiar.Deslocamento de famílias ou de alguns de seus membros que vão se juntar a uma ou mais pessoas que migraram anteriormente.
Relação de dependência total.Número de jovens e de idosos relacionado à população adulta em idade de trabalhar. Os primeiros dependem dos últimos.
Relação de masculinidade média.Efetivos masculinos de uma população em relação a cem pessoas do sexo feminino.
Relação de masculinidade ao nascer.Efetivos de recém-nascidos
do sexo masculino em relação aos recém-nascidos do sexo feminino.
Limiar de simples substituição
das gerações.Índice de fecundidade necessário para que as mulheres de
uma geração sejam substituídas por
um número igual à geração seguinte,
portanto, trinta anos depois.
Taxa de crescimento natural.
Diferença entre o número de nascimentos e o de mortes, em relação
à população do ano considerado.
Taxa de mortalidade.Número de mortes durante um espaço de tempo (em geral, um ano) em relação à população do período.
Taxa de mortalidade juvenil.
Número de crianças mortas antes
de atingir 5 anos em relação a mil nascidos vivos no mesmo período.
Taxa de mortalidade
infantoadolescente.Número de pessoas de uma geração mortas entre
1 ano completo e a idade adulta, portanto, crianças e adolescentes (geralmente antes da idade de 20 anos), em relação ao número de nascimentos dessa geração.
Taxa de mortalidade materna. Número de mulheres que morrem
em decorrência do parto ou de suas consequências por 100 mil nascidos vivos em determinado ano.
Transição demográfica.Período durante o qual uma população passa
de um regime de mortalidade e fertilidade elevadas para um regime de baixa mortalidade e depois de baixa taxa de natalidade

Gérard-François Dumont
Professor da Universidade de Paris-Sorbonne e presidente da revista Population & Avenir.


1 Estatísticas da divisão de população da ONU.
2 Ibidem.
3 Ler o dossiê “Mégapoles à l’assaut de la planète”,Le Monde diplomatique, abril de 2010.
4 Estatísticas “International migration 2009” da divisão de população da ONU.
Palavras chave: demografia, população, envelhecimento, idoso

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A Natureza da Atividade Filosófica

Marco Antonio Franciotti

A atividade filosófica é sui generis. Parecemos viver muito bem sem ela. Aprendemos e ensinamos, trabalhamos, ouvimos música, vamos à praia e podemos construir nossas vidas com planos de sucesso e estabilidade financeira sem nos deixarmos envolver pelo discurso e pelos problemas filosóficos. Na verdade, os problemas filosóficos normalmente nos deixam incomodados, mal humorados, ansiosos. Isso porque, como normalmente ocorre, ao tentar resolvê-los, deparamo-nos com outros problemas que até então não havíamos considerado. A filosofia parece ser não apenas desnecessária para o bem viver; ela parece ser incompatível com a idéia de uma vida tranqüila. Somando-se a isso, devemos considerar o caráter abstrato da atividade filosófica. Por lidar com problemas distantes da vida comum, o filósofo é considerado freqüentemente uma pessoa destacada da realidade, perdido em especulações inúteis, alheio aos problemas que a vida diária se lhe impõem.
Essa visão negativa do filósofo rondou-o desde os primórdios da filosofia. Como ilustração, é interessante recorrer a uma lenda acerca de Tales, o grande matemático e filósofo grego que revolucionou a geometria, aquele que inventou o ‘Teorema de Tales’, estudado nas aulas de matemática do 2o grau. Em sua época, cerca de 580 a. C., não havia a divisão do conhecimento que há hoje, de modo que o intelectual era tanto matemático, quanto político, astrônomo, geômetra, etc. Conta a lenda que Tales certa vez passeava à noite olhando para as estrelas, com o intuito de estudar seus movimentos e regularidades. Com os olhos fixos no céu, ele não percebeu que caminhava em direção a um poço. Depois de tropeçar e cair dentro dele, uma jovem trácia que testemunhara o fato observou em tom sarcástico: "tão preocupado com os assuntos celestes que acabou esquecendo da terra que o sustenta" (cf. Platão: Teeteto, 174a). Essa lenda é utilizada para caracterizar a visão que o senso comum tem do filósofo. "Filosofia", diz o dito popular, "é aquilo sem o qual o mundo seria tal e qual". O filósofo é visto como um sonhador de sonhos inefáveis, ou ainda como uma pessoa que está sempre envolvida com assuntos que a grande maioria das pessoas não dá o menor valor.
Essa visão caricatural da filosofia não se restringe ao senso comum. Guimarães Rosa certa vez definiu o filósofo como "aquele que se encontra num quarto escuro, à procura de um gato preto que não está lá. E ele o encontra..." Fernando Pessoa, em seu famoso poema ‘Tabacaria’, escreve que "a metafísica... é uma conseqüência de se estar mal disposto..." Mas será que é assim mesmo, quer dizer, será que é tão simples descartar a filosofia como uma atividade intelectual inútil? Para obtermos uma resposta satisfatória, é necessário que especifiquemos o ofício do filósofo. Qual é a natureza do trabalho filosófico?
A leitura dos filósofos sugere que a primeira característica distintiva do filósofo é a de lidar com idéias ou conceitos e não com objetos palpáveis, como o lavrador e o ferreiro. É claro que estes últimos não dispensam (e não podem dispensar) o uso de idéias, o ferreiro recorrendo sempre à idéia ou ao modelo do martelo a ser construído e o lavrador à idéia do solo e da época de plantio. O filósofo, porém, lida com idéias que não são sempre traduzíveis em coisas concretas, tais como o conceito de ‘verdade’ ou de ‘bem’. Além disso, contrariamente ao psicólogo e ao sociólogo, por exemplo, o filósofo não está preocupado em colocar em prática as suas idéias. Isso não quer dizer que ele se recuse a fazê-lo; ele simplesmente não considera a concretização de suas idéias como fundamental para a sua atividade. Como diz Platão: "o filósofo permanece totalmente alheio ao seu vizinho mais próximo; ele é ignorante..., ele mal sabe se é um homem ou um animal; ele está investigando a essência do homem". Embora ele prefira o convívio das cidades, "sua mente, desdenhando da irrelevância e da nulidade das coisas humanas, está sobrevoando o estrangeiro" (Teeteto, pgs. 25-6).
O que há de peculiar em sua prática com conceitos, isto é, em sua prática teórica, é que ele está sempre buscando o fundamento ou a raiz dos problemas e das doutrinas analisadas. Para ilustrar esse ponto, creio ser necessário recorrer a Sócrates. Perguntado pelos chamados sábios acerca do que ele conhecia, Sócrates respondeu: "A única coisa de certa que sei é que nada sei". É claro que Sócrates sabia muito mais do que isso, mas o que ele queria dizer era que, contrariamente aos chamados sábios, ele procurava se definir em termos dos limites do seu conhecimento e não em termos da quantidade de conhecimentos adquiridos. Sócrates acreditava que a primeira atitude em direção ao conhecimento não era a certeza, mas a ignorância. Nesse contexto, a palavra ‘ignorância’ não está sendo usada no sentido pejorativo, mas sim no sentido de ‘ausência de saber’, ou ‘ausência de conhecimento’. O filósofo não é, então, nem o sábio nem o ignorante. Ele é, na verdade, aquele que busca a sabedoria, ou que procura ser amigo da sabedoria. Ele não é também o homem das respostas, mas das perguntas. Diante, por exemplo, do problema acerca da atitude justa ou não de um governante, o filósofo deve destacar que o que está em jogo é antes de tudo o conceito de justiça; somente a partir de uma idéia clara desse conceito é que se pode caracterizar a atitude do governante como justa ou não. É nesse sentido que o filósofo se diz estar preocupado não tanto com a concretização da sua idéia mas com a idéia em si, isto é, não com o ato específico do governante mas com a definição clara de justiça.
Assim, o filósofo realmente parece habitar um outro mundo, aquele que não é visto ou palpável, o mundo das pressuposições e dos fundamentos do conhecimento. Ele parece estar realmente num quarto escuro à procura de um gato preto, pois muitas vezes esse fundamento ou essa raiz não se encontra visível. Ele se deixa envolver pelos pensamentos nos sentido de procurar o ponto que originou uma discussão. Mas além dessa busca da raiz dos problemas, ou melhor, além dessa atitude radical que acabei de expor, há uma segunda característica da maneira filosófica de refletir. Suponha que eu receba a tarefa de desenhar o mapa, por exemplo, da ilha de Santa Catarina. A representação, por exemplo, da orla da praia da Joaquina, deve ser construída de acordo com a escala geral do mapa. Se, por ventura, a representação em questão não respeitar a escala, a praia da Joaquina ocupará no meu mapa uma área desproporcional em relação ao todo. O filósofo, nesse sentido, é como um geógrafo: a atitude radical deve ser acompanhada de uma visão da totalidade, i.e., de uma atitude com respeito ao todo. Sem essa segunda característica, o filósofo se torna tão descuidado como o geógrafo medíocre que não leva em conta a escala do mapa que está elaborando, ou como o botânico que pretende estudar uma determinada planta sem levar em conta o tipo de solo e o clima do ambiente em que ela nasceu.
Até agora, as minhas observações não fornecem material suficiente para uma análise da visão que aquela jovem trácia e o homem comum têm do filósofo, embora já nos dêem claras indicações da visão que o filósofo tem de si mesmo. O homem comum parece ter um forte aliado, um aliado-filósofo, dos mais influentes na história da filosofia. Eu me refiro a Karl Marx. Foi ele que, em tom bombástico, afirmou: "Os filósofos até hoje se preocuparam apenas em interpretar o mundo; trata-se, porém, de transformá-lo". Parece que Marx também vê o filósofo como distante das questões do mundo. Creio, porém, que essa análise não corresponde à intenção real de Marx. É preciso reconhecer antes de mais nada que não é possível transformar o mundo sem interpretá-lo. Qualquer ação humana concreta pressupõe uma interpretação, isto é, uma atitude reflexiva e conceitual. O próprio termo "realidade" se apresenta carregado de interpretação. É como se eu apenas tivesse acesso à ilha de Santa Catarina através do seu mapa. Quando falamos, por exemplo, da situação social do Brasil contemporâneo, o que fazemos é encaixar a experiência que temos do nosso dia a dia, bem como as informações que dispomos do que acontece no Brasil inteiro e de sua história, num modelo conceitual, numa teoria, ainda que rudimentar, a partir da qual os eventos são relacionados e catalogados entre si. Assim, nenhuma atitude transformadora se dá sem que certos pressupostos sejam assumidos, sem que determinados princípios que vão direcionar a nossa investigação e a nossa ação sejam levados em conta. Em outras palavras, a transformação do real só pode ocorrer se se interpretar o que está para ser transformado. Sem um plano pré-estabelecido, com seus pressupostos teóricos, corre-se o risco de nada transformar, ou de transformar para pior.
Dessa forma, a maneira mais adequada que encontro de analisar a frase de Marx é reconhecer que, de um lado, Marx não poderia estar dizendo que devemos simplesmente parar de interpretar e apenas transformar, pois a transformação requer interpretação; de outro lado, a interpretação sem transformação é inútil, isto é, a interpretação em termos da atitude reflexiva do filósofo deve ser sempre em última instância uma interpretação com vistas à transformação do mundo. Dito de outro modo, a filosofia deve sempre falar do mundo, desse mundo diante dos nossos olhos e que tem um passado, um presente e um futuro dos quais podemos ter experiência, tentando modificá-la e melhorá-la. Embora à primeira vista não pareça, a frase de Marx é importante para uma defesa da atividade filosófica. Ela permite-nos corrigir o homem comum, mostrando-lhe o caráter enganador da idéia de que o filósofo está "do lado de fora" do mundo. Marx está se referindo a um determinado tipo de filósofo, ou a um determinado tipo de filosofia: aquele que em nada contribui para o desenvolvimento da humanidade, que é hermético, arrogante e auto-suficiente. Esse tipo de filosofia, realmente, não é interessante. Ele se reduz a um mero exercício de diletantismo.
Outro ponto importante aqui consiste em refletir sobre o que significa transformar. Creio que não se pode exigir que o filósofo transforme o mundo, tal como o ferreiro ou o carpinteiro o fazem. O instrumental do filósofo são os conceitos; portanto, a transformação esperada deve incidir sobre o universo conceitual diretamente, e apenas indiretamente sobre a realidade concreta. Em outras palavras, o filósofo não é aquele que necessariamente sai às ruas pondo em prática as suas teorias. Ele é, essencialmente, um teórico inserido no mundo, e mesmo o problema da transformação da realidade é por ele tratado apenas teoricamente. Isso não quer dizer que ele esteja proibido de agir praticamente. Não há por que reprovar Sartre por ter aderido às passeatas estudantis no final da década de sessenta em Paris. O ponto, porém, é que, mesmo se ele não tivesse feito isso, ele continuaria a ser considerado um filósofo. Do mesmo modo, Platão continua sendo considerado filósofo a despeito de jamais ter sido rei, embora defendesse a idéia de que o filósofo deveria ser rei e que o rei deveria ser filósofo.
Vários pensadores adotaram uma postura destrutiva com relação à filosofia, ou pelo menos com relação ao que eles concebiam como sendo filosofia. Um exemplo a ser citado é o de Sexto Empírico. Para ele, a atividade filosófica é essencialmente teórica e contemplativa. Vista desse modo, a filosofia parece nada mais do que uma atividade destacada da realidade, quer dizer, destacada da vida e da prática comuns. O filósofo é um dogmático, quer dizer, uma pessoa que fica formulando dogmas ou, na linguagem de Sexto Empírico, formulando proposições e provas acerca do não-evidente ou daquilo que não pode ser verificado na experiência, daquilo que de algum modo se coloca para além do dado que aparece através dos nossos sentidos. O dogmático procura estabelecer o conhecimento do não-evidente. Esse conhecimento se baseia num conjunto de regras e princípios supostamente não-controversos, por meio dos quais é possível elaborar argumentos irrefutáveis. É esse conjunto de proposições que é chamado de teoria ou doutrina.
O cético descrito por Sexto Empírico surge como um opositor no debate com o dogmático, recusando-se a admitir a verdade das pretensões teóricas e doutrinais sobre o não-evidente. Ele tenta então substituir essas pretensões por um mero reconhecimento da nossa habilidade de viver e de explorar o mundo das coisas que aparecem. O procedimento do cético exibe vários momentos. Primeiro, ele observa as posições filosóficas conflitantes sobre todo o tipo de assunto (diafonia). Isso o leva a desenvolver a habilidade de produzir um contra-argumento a todo argumento com o qual ele se depara, de tal modo que tanto um quanto o outro acabam por possuir a mesma força persuasiva (isostenia). Depois de um certo tempo, ele acaba por duvidar de que seja realmente possível produzir uma explicação ou uma solução definitiva para os problemas filosóficos em geral (apatia). Em conseqüência disso, ele propõe que se suspenda o juízo com respeito às pretensões dogmáticas. Essa atitude o leva a atingir a desejada paz mental, ou o conforto da alma (ataraxia). Isso posto, ele se restringe a descrever como um cronista aquilo que se lhe aparece, manifestando sempre a sua desconfiança com relação a compromissos teóricos (cf. Williams 1988, pg. 560)
Esse é um procedimento bem próximo daquele que o homem comum adota diante da filosofia ou da atividade reflexiva em geral. Explicações abstratas não nos levam mesmo a lugar algum, de modo que a melhor coisa a fazer é suspender o juízo sobre elas, mudar de idéia, pensar em outras coisas, ou simplesmente viver sem se apegar a abstrações. Mas será que é assim tão fácil se livrar das abstrações? Será que é assim tão simples olhar por outro lado e ‘deixar par lá’, por exemplo, quando a gente se dá conta de que a gente está abstraindo ou especulando?
Hume levanta essa possibilidade, mas se opõe a ela. Na celebrada conclusão do livro primeiro do Tratado da Natureza Humana, ele diz que especulações filosóficas profundas, atividades reflexivas muito abstratas, só o levam ao desconforto. Nenhuma solução aos problemas é encontrada, e parece realmente que o mundo fica ‘tal e qual’. Nada muda quando a gente reflete, ou quando a gente filosofa dessa forma. Ele então decide simplesmente viver, passear ao longo do rio, jogar gamão com seus amigos e deixar de lado as elucubrações. Ele está preparado para engavetar os livros de metafísica escolástica, ou jogá-los ao fogo. No entanto, as inquietações especulativas parecem voltar à sua mente sem que ele possa impedir. Depois de um certo tempo ‘refrescando’ a mente com as frivolidades da vida, ele começa a querer saber quais os motivos que o levam a gostar de certas coisas e não de outras, a repudiar algumas coisas e não outras, a considerar certas ações como boas e outras como más, a julgar que certas afirmações são verdadeiras e outras falsas. Melhor dizendo, ele retorna ao universo da abstração, dos princípios e das regras que sustentamos muitas vezes sem sermos conscientes delas. Isso quer dizer que ele retorna ao universo da atividade filosófica naturalmente. É por isso que Hume é chamado por muitos de seu comentadores de naturalista. A filosofia é, para ele, algo que está instalado em nós, que faz parte da nossa condição humana. A natureza, ele diz, força-nos a refletir, a julgar, do mesmo modo que nos força a respirar e a sentir (Tratado da Natureza Humana, pg. 265 ff).
Não há dúvida de que o homem comum possa passar a vida inteira sem se preocupar com os problemas que rondam os filósofos. Mas ele, conscientemente ou não, está se valendo de ‘motivos’ para tomar as tantas decisões que a vida o obriga a tomar. Se olharmos mais de perto, veremos que esses motivos estão calcados em princípios ou regras morais, ou em informações às vezes genuínas (ou verdadeiras), às vezes equivocadas (falsas). Quer dizer, o homem comum não pára de refletir, de especular. A reflexão, quer ele se dê conta disso ou não, faz parte de sua vida do mesmo modo que faz parte da vida dos intelectuais, sejam eles cientistas ou filósofos.
Mas a filosofia é mais do que refletir. Ela é refletir sobre o refletir. A filosofia surge quando a própria capacidade de refletir é posta em questão, quer dizer, refletimos sobre o refletir, quando queremos saber como adquirimos conhecimentos, ou se sabemos realmente aquilo que supomos saber. Por isso que, para Sócrates, o ponto de partida do filosofar é o reconhecimento da própria ignorância. A afirmação ‘só sei que nada sei’ só pode ser feita por alguém que já exerceu uma auto-crítica, que já se debruçou sobre as bases de seus conhecimentos e os avaliou de modo adequado. Muitas vezes, quando fazemos isso honestamente, quer dizer, quando olhamos para dentro de nós mesmos e pesquisamos as razões daquilo que defendemos às vezes tão teimosamente, nada encontramos, e aí ficamos espantados, perturbados, incomodados. Platão chamava esse estado de espírito de thaumazéin, isto é, o espanto da própria ignorância. Esse é o motor do filosofar. É o que nos leva a tentar preencher o vazio, a ausência do saber, a ignorância.
Para esclarecer esse ponto, é oportuno comparar a filosofia com a ciência. A atividade do cientista é marcadamente empírica. Ele tenta entender o mundo como ele é dado em sua experiência e, a partir daí, ele procura predizer e explicar os eventos. O cientista via de regra pergunta: "O que causou isso? " Ao tentar responder a essa pergunta, ele recorre a outros eventos que requerem eles mesmos mais explicações. Quando ele se vê às voltas com uma seqüência de eventos interligados, ele pode perguntar: "O que causou a existência das séries? ", ou ainda, "por que esta série e não outra? " Estas perguntas, porém, levam-no para além dos limites da atividade científica, tendo em vista que uma série como essa não é dada na experiência. Esse território, às vezes considerado como obscuro, é a filosofia. Certas questões levam-nos a níveis de abstração que nenhuma investigação empírica pode proporcionar. Elas surgem, pode-se dizer, no final de todas as outras pesquisas, "quando problemas relativos aos fundamentos dos saberes particulares, como a Física, a Matemática, a Geometria, etc., são detectados ou seus métodos de investigação passam a ser questionados. Assim sendo, os problemas filosóficos e os sistemas destinados a resolvê-los são formulados em termos que tendem a se referir aos domínios da possibilidade e da necessidade e não aos da realidade, ou seja, ao que poderia e ao que deveria ser e não ao que é" (Scruton 1981, pg. 12 ff.)
Isso quer dizer que nem toda pesquisa fronteiriça aos saberes especiais é filosófica. Quando se tenta resolver problemas filosóficos sem se questionar a validade dos procedimentos adotados, incentiva-se o dogmatismo e a superstição. Por exemplo, no caso da existência da série de eventos, se pressupusermos que Deus é a causa primeira e também a meta final de todas as coisas, acabamos recorrendo a um artigo de fé e não a um saber racional. Essa afirmação tem o mérito de produzir uma dada resposta a quebra-cabeças metafísicos, mas ela possui uma grande desvantagem, que é a de se basear numa suposição que não pode ser colocada em dúvida, e que é por isso mesmo dogmática. Daí não se segue que o filósofo deva necessariamente ser um ateu. Muitos filósofos do passado (e mesmo vários do presente) acreditam em Deus e pertencem a diferentes religiões. Mas quando eles decidem discutir a existência ou não de Deus, eles sabem que não podem simplesmente postulá-la sem maiores problemas. Eles sabem que toda discussão é uma disputa, uma busca da melhor explicação ou da solução de um certo problema. Decidir discutir significa submeter-se ao tribunal final da razão, que não aceita a mera crença incontestável como base de argumentação (cf. Scruton 1981, pg. 14).
Tal problemática remete-nos à relação da filosofia com a religião. Sem dúvida que há semelhanças entre o filósofo e o religioso. Ambos procuram refletir sobre questões abstratas, ambos procuram explicações gerais, ambos procuram um princípio ou um conjunto de princípios fundamentais a partir dos quais podemos responder às questões mais importantes que nos afligem. mas há pelo menos uma diferença essencial entre os dois: o religioso encontra o seu princípio fundamental em algo que, em última instância, requer uma crença não justificável em um Ser Superior que explica tudo. O filósofo, por seu turno, procura a verdade ou aquilo que pode ser estabelecido através de bases racionais.
Isso nos conduz a uma outra característica importante da atividade filosófica, a saber, a preocupação com a verdade. As questões filosóficas podem muito bem ficar sem respostas, ou podem mesmo propiciar polêmicas intermináveis (como geralmente ocorre). Mas elas são questões de qualquer modo e requerem, por isso mesmo, uma avaliação das razões sugeridas e propostas para que possamos caracterizá-las como verdadeiras ou falsas. Afinal, a filosofia não pode ser um mero aglomerado de proposições retóricas, sem qualquer pretensão de estabelecer princípios sólidos. Ela pode ser definida como uma atividade a partir da qual se estudam métodos e metas das nossas formas diferenciadas de reflexão, a fim de que possamos chegar a conclusões sobre os seus limites e a sua validade. A pesquisa filosófica se dá de uma maneira racional, quer dizer, sem qualquer remissão à fé, visando o estabelecimento de respostas convincentes a questões as mais diversas que fogem ao âmbito das ciências particulares mas que são comumente trazidas à luz por elas.
Muito bem. Já disse que a filosofia tem por função, entre outras coisas, refletir sobre o refletir. Através do filosofar, podemos saber mais sobre a nossa capacidade reflexiva. Por quê? Porque, em assim o fazendo podemos exercer o poder de reflexão mais amplamente, mais efetivamente e com mais precisão. Mas por que é tão importante exercer a capacidade reflexiva? A resposta é simples, mas essencial. Sem refletir, não poder;iamos ser livres. Agir sem refletir significa não ser dono das próprias ações, ou ser movido por causas outras que não a nossa própria razão. Essa é a diferença entre nós e os robôs. Eles não possuem poder de reflexão e por isso mesmo eles não podem escolher por si mesmos o curso de ação que irão adotar. Do mesmo modo, quando adotamos um certo curso de ação ‘sem refletir’, mecanicamente, a gente se assemelha a um autômato, ou a um robô nas mãos do primeiro que passa.
É neste momento que fica claro o porquê do filosofar. A ponte entre a filosofia e as outras áreas não é imediata. Mas ela existe. Quando digo que sem refletir seríamos apenas autômatos, eu quero dizer que a atividade reflexiva é condição de possibilidade das decisões livres. Se assim é, então filosofia tem a ver com liberdade. Explico melhor: se a atividade reflexiva leva-nos a ser livres, e se a filosofia permite-nos usar essa capacidade reflexiva com cada vez mais profundidade, então a filosofia pode ser vista como uma ferramenta essencial para a nossa liberdade, levando-nos a pensar mais claramente e, em conseqüência disso, a usar a capacidade de escolha em sua plenitude. O exercício da filosofia é a expressão mais profunda e plena da nossa liberdade. É a liberdade do pensar, do refletir, que nos leva a agir livremente. O exercício da liberdade pressupõe que reflitamos sobre as nossas vidas, as nossas ações, as pessoas que nos rodeiam, o país em que vivemos, as regras da comunidade a qual pertencemos, e as informações (verdadeiros ou falsas) que obtemos, etc.
Esse é um resultado fundamental. Se surgir então a pergunta sobre o porquê de se estudar filosofia, independente dos interesses intelectuais de cada um, essa é uma resposta possível. Além disso, a relação entre filosofia e liberdade permite que a gente responda àqueles que dizem que o filósofo em nada contribui para o desenvolvimento da humanidade ou para a mudança (para melhor) da realidade. Se procurarmos mudar a realidade sem liberdade, na verdade estaremos mudando algo não segundo a nossa vontade, mas segundo a vontade dos outros.
Uma outra lição que se pode tirar da relação entre filosofia e liberdade é que ela nos ajuda a compreender o porquê da insatisfação constante do filósofo, aquela que Hume sente e que o leva a passear ao longo do rio e a jogar gamão com os seus amigos. A insatisfação origina-se do fato de que a atividade filosófica, assim como a atividade teórica em geral, não parece ter um ponto final. Mas isso é exatamente o que a torna tão essencial à liberdade. O trabalho filosófico em particular e o teórico em geral não têm fim. Conceber um fim à atividade reflexiva é, de um certo modo, conceber o fim do exercício da liberdade. A gente só pára de refletir sobre os princípios que atuam como premissas de argumentos quando a gente se rende à superstição, à religião ou ao totalitarismo.
Finalmente, pode-se dizer que a atividade reflexiva é auto-referente. Isso quer dizer que, mesmo para combatê-la, a gente tem que adotá-la. Esse é o erro de Sexto Empírico e de outros céticos que suspeitavam da atividade especulativa. Eles só podem combater a especulação de modo persuasivo se eles adotarem um procedimento especulativo. Eles só podem condenar uma teoria adotando outra. O que resta então é adotar uma teoria que resista a ataques, e que explique pelo menos alguns dos problemas que nos afligem. Mas como descobrir essa teoria, que não é mágica, como queriam os dogmáticos, mas que inevitavelmente se encontra na atividade intelectual, como negavam os céticos? No caso da filosofia, a gente tem que filosofar mesmo para negar a filosofia, como uma vez disse Aristóteles. A gente tem que ser filósofo mesmo se a gente desejar jogar fora a filosofia.
Publicado no jornal A Notícia, em 16 de Maio de 1993

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A LIBERDADE ENTRE A RAZÃO E OS INSTINTOS

I – A LIBERDADE ENTRE A RAZÃO E OS INSTINTOS
1 – LIBERDADE E RAZÃO: SÓCRATES
Conheça-te a ti mesmo” (Sócrates)
1.1 – Das trevas à luz: Platão e a alegoria da caverna
Platão (427-347 a.C.) formulou uma história conhecida como alegoria da caverna. Nela, há algumas pessoas que estão lá desde crianças, amarradas pelas pernas e pelo pescoço, de costas para a entrada da caverna, impedidas de saírem dali. Da luz que vem de fora e que se projeta no fundo da caverna, estas pessoas vêem as sombras de outras pessoas que passavam carregando toda espécie de objetos fora da caverna, estes prisioneiros ainda ouvem o eco dos barulhos que vêm lá de fora, já que lá alguns caminham conversando com outros – os prisioneiros pensam, portanto, que a realidade é a sombra que vêem e o eco que ouvem.
Estes prisioneiros faziam até concursos e concediam prêmios aos que distinguiam da melhor forma as sombras que eram observadas, aos que conseguiam primeiramente notar quais delas passavam e quais delas passavam acompanhadas de outras e, por fim, até de prever as próximas sombras que passariam.
Se fossem libertados, os prisioneiros continuariam a pensar que as sombras eram, de fato, o que havia de real no mundo; porém, caminhariam para fora da caverna e teriam a vista ofuscada, pouco a pouco acostumariam-se com a luz e conseguiriam ver as imagens deles mesmos projetadas na água, veriam os próprios objetos, veriam a lua e as estrelas. Já acostumados, conseguiriam voltar os olhos ao sol e o veriam, compreendendo enfim que ele seria o autor das projeções que haviam no fundo da caverna.
Ocorreu que um destes prisioneiros soltou-se e caminhou até a entrada da caverna, ele notou, então, que aquelas imagens vistas lá embaixo não passavam das sombras das coisas que estavam fora da caverna e que estas eram a realidade. Encantado com o que viu, ele retornou à caverna, já que sentiu enorme piedade dos seus companheiros de cárcere, contando tudo o que havia visto. Ele sentiu as trevas em seus olhos, já que havia se acostumado a olhar para a verdadeira luz, e tinha muita dificuldade em distinguir as sombras (seria preciso mais tempo para ele se acostumar com as trevas novamente). Os outros prisioneiros, então, consideraram que não valia à pena sair da caverna, defenderam-se daquele que tentou tirar-lhes de lá e até o mataram.
Para Platão, Sócrates (470-399 a.C.), seu grande mestre, foi quem viu a luz, quem retirou a alma da escuridão e a iluminou para, em seguida, retornar à caverna e dizer que tudo que ali havia não era real, mas sombra, ilusão. Viu o que cada sombra representava melhor que ninguém porque viu, também, a sua verdadeira forma fora da caverna e voltou para dizer aos prisioneiros qual era a essência daquilo que eles viam. O que fez Sócrates foi iluminar seu espírito com uma sabedoria que o retirou das trevas, vejamos como é possível alcançar a luz!
1.2 – “Conheça-te a ti mesmo:” Sócrates e o poder da razão.
Conheça-te a ti mesmo”: na entrada do templo de Apolo era esta a mensagem que estava escrita. Era esta a mensagem também que Sócrates aconselhava às pessoas: ele gostaria que elas saíssem da caverna, da escuridão que havia em seus espíritos. Para alcançarem a luz, seria necessário, segundo ele, buscá-la. Porém, aonde buscá-la? A resposta era imediata: dentro de nós mesmos – “conheça-te a ti mesmo”.
Para que as pessoas conhecessem a si mesmas, Sócrates fazia perguntas: era um perguntador incansável, e até irritante. Dialogava com todos sobre os mais variados assuntos e faziam-nos perceber que o que elas sabiam sobre esses assuntos não passavam de sombras, aparências do que elas, de fato, eram. Com a continuidade do diálogo, Sócrates ajudava as pessoas a lembrar do que já sabiam, já que ele pensava que a sabedoria estava dentro de nós1, não fora; por isso, aconselhava: “conheça-te a ti mesmo”.
Conhecendo a nós mesmos, tomaríamos ciência que a nossa alma racional seria um fator decisivo para a nossa felicidade: agindo de acordo com a razão, agiríamos de acordo com nosso ser – agiríamos como homens, não como animais. Não seríamos dominados pelos mesmos impulsos irracionais que dominam os animais, não seríamos dominados pelas paixões e pelos sentidos, seríamos senhores de nós mesmos e não agiríamos de modo desregrado. Para agirmos como homens, temos de saber o que somos: se somos racionais, nossa conduta também precisa ser. “Conheça-te a ti mesmo”.
Em suma, como procuramos o bem, tentamos nos afastar do mal: viver escravo dos prazeres é, para Sócrates, viver sem se saber o que se quer, é não-saber, é não usar a razão, é não agir como homem. Viver feliz e livre é viver senhor de nós mesmos, é saber o que se quer, é agir racionalmente, é procurar o bem para si mesmo. Eis o caminho para a liberdade na Filosofia socrática:

Conheça-te a ti mesmo:
  • Quem sabe (usa a razão) o que é o bem, pratica-o;
  • quem pratica o bem, é, realmente, um ser humano;
  • a liberdade reside na ação racional: é a razão que nos livra do vício e nos conduz à felicidade.
Sócrates (470-399 a.C.)

Um exemplo: supondo que esteja muito calor e você foi a uma sorveteria, racionalmente se refresca com um sorvete e sabe que ele faz bem para você justamente porque lhe refresca. O que você fez foi um bem a si mesmo ao tomar um sorvete. E mais: libertou-se da sensação de calor. Porém, caso você aja desregradamente, tomando muitos sorvetes, o prazer transforma-se em um problema para o seu estômago. O que você fez foi um mal para si mesmo: ao deixar de usar a razão, deixou de agir como homem e tornou-se um escravo dos prazeres.
2 – Reflita sobre a alegoria da caverna e escreva:
  1. A caverna é o mundo em que vivemos? Explique.
  2. O prisioneiro que se liberta e sai da caverna é o filósofo? Explique.
  3. Qual era a mensagem que estava inscrita no templo de Apolo e que era dita por Sócrates aos cidadãos de Atenas? Por que ela é importante para sermos livres?
  4. Para Sócrates, o que é preciso para fazermos o bem para nós mesmos? Explique.
  5. Dê dois exemplos de ações livres, de acordo com a filosofia de Sócrates.
2 – LIBERDADE E INSTINTOS: NIETZSCHE
Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!” (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, 1885, 38 [12])
2.1 – Saber e fazer: uma diferença
Sabemos que, para Sócrates, ao sabermos o que é o bem, o faremos. Porém, Friedrich Nietzsche (1844-1900) acreditava que este foi um grande erro de Sócrates e de Platão: quantas vezes agimos em sentido contrário a uma ação considerada correta? As pessoas sabem que não devem mentir, mas mentem. Sabem que não devem “furar fila”, mas furam. Sabem que devem ser polidas, mas não o são. O que Nietzsche apontou é que há uma diferença entre saber e fazer: podemos conhecer muito bem uma obrigação e, mesmo assim, desrespeitá-la. Por que agimos assim? Parece que há algo a mais em nós do que pretendia Sócrates, parece que a razão não é o suficiente para explicar a liberdade.
Além da razão, há o corpo: nossos impulsos vitais, nossos instintos foram deixados de lado pela moral socrática. O “conheça-te a ti mesmo” de Sócrates foi um projeto falido, segundo Nietzsche, por não levar o corpo em conta, aquele que quis conhecer, não conheceu a si mesmo. Para Nietzsche, nossos impulsos são constituídos de forças que duelam em nós mesmos para prevalecerem uma às outras. Somos um conflito de forças que lutam entre si para sobreporem-se às outras.
Sócrates errou, segundo Nietzsche, ao pensar que nossas ações são o resultado de uma empresa exclusivamente espiritual, cada ação movida por nós é o resultado de forças instintivas que lutam entre si e impulsionam o corpo. E não se trata apenas do corpo do homem, mas de algo que acontece em toda a natureza: em cada célula de cada ser vivo há esta luta, nem os seres microscópicos escapam destas forças. São forças que não param de duelar em um só momento e cada uma delas procura ser a mais potente – essa é a teoria nietzschiana da vontade de potência. Por isso, o filósofo pensou que não era possível explicar nossa conduta e nossa liberdade apenas por nossa razão, como desejou Sócrates. É preciso respeitar nossa natureza instintiva: “Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!”2
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
2.2 – Liberdade e impulsos: crítica da liberdade como dominação. Ou “como tornar-se o que se é”.
Para Nietzsche, somos forças que buscam vontade de potência. Imagine agora que por muitas vezes reprimimos estas forças, que agimos contra nosso próprio ser. Foi isto que aconteceu na história da humanidade, segundo o filósofo, vejamos como.
Para Nietzsche, há dois tipos de pessoas: as que são fortes como aves de rapina e as que são fracas como ovelhas. As aves de rapina também são chamadas de fortes, senhores, nobres e as ovelhas são chamadas de fracas, escravas, ressentidas. As aves de rapina têm força para realizarem aquilo que querem e, se tiverem o desejo de capturar ovelhas, elas conseguirão se impor, afinal são mais fortes. Já as ovelhas, para se defenderem, farão com que a força das aves de rapina não se manifeste, darão um “golpe de mestre”3 e enganarão as aves de rapina com uma “fábrica de mentiras”4: a impotência passa a ser considerada virtude e bondade, a fraqueza passa a ser considerada mérito. As ovelhas fazem as aves de rapina acreditarem em um reino de Deus, onde seriam punidas caso efetivassem sua força.
Como há dois tipos de pessoas, há dois tipos de moral: como os fortes dizem sim a si mesmos, vêem-se como bons, como fortes, e desprezam as ovelhas, já que são seres fracos, ruins. Já as ovelhas, dizem não a um outro, consideram-no mau e desejam vingança. Isto é, as ovelhas inverteram os valores e dominaram as aves de rapina com a moral socrática e com o cristianismo. Criaram o reino de Deus para punirem e vingarem-se dos que insistirem em efetivar suas forças, usaram a moral como forma de dominar as aves de rapina.
As ovelhas dizem: “Você é uma ave de rapina, mas é livre para não usar sua força, é livre para não cometer o erro de agir de acordo com sua natureza, é livre para não ser uma ave de rapina. Caso nos devore, será punida no reino de Deus”! Isto é, pecamos, mas somos livres para expiar e pagar nossa culpa; desrespeitamos as normas, mas somos livres para pagarmos a dívida. A liberdade aparece como meio de submissão das aves de rapina às ovelhas, estas sustentam a crença de que “o forte é livre para ser fraco, e ave de rapina livre para ser ovelha”5.
AVES DE RAPINA
OVELHAS
Fortes, senhores, nobres.
Fracas, escravas, ressentidas.
Como são muito fortes, dizem sim a si mesmas.
Como são fracas, dizem não a um outro, a alguém que não são elas mesmas.
Consideram a si mesmos como boas e as outras como ruins. Inventaram o desprezo.
Consideram a si mesmas como boas e as outras como maus. Inventaram a vingança.
Acreditaram na fábrica de mentiras (moral) das ovelhas e foram dominadas por elas.
Inverteram a moral inventaram o reino de Deus para dominarem as aves de rapina.
Como os fortes acreditaram, a conseqüência para a sua liberdade foi trágica: foram dominados por quem era mais fraco que eles e dominados por uma liberdade servil, isto é, uma liberdade de se aceitar o que não se é – os fortes escolhem não exercer sua força para não serem punidos no reino de Deus. Ao invés de agirem de acordo com seus instintos, os reprimem com a razão. O caminho que Nietzsche trilha para que as aves de rapina voltem a ser livres é somente um:
Como tornar-se o que se é”6
  • Dizer não à moral, instrumento dos fracos para dominar os fortes;
  • que a ave de rapina seja ave de rapina;
  • a liberdade reside em não se deixar escravizar pela razão que os fracos impuseram aos fortes. A liberdade está nos impulsos vitais não reprimidos pela moral.
VAMOS FILOSOFAR...
1 – Sócrates pensava que para fazer o bem, bastaria sabê-lo. Nietzsche concordou com ele? Explique.
2 – Nietzsche considerava o “conheça-te a ti mesmo”, de Sócrates, um projeto que atingiu seu objetivo? Explique.
3 – Para Nietzsche, como funciona nossa natureza instintiva?
4 – Quem são e como se caracterizam os dois tipos de pessoas que houve em nossa história, segundo Nietzsche?
5 – O que fizeram as ovelhas para que as aves de rapina não exercessem sua força sobre elas?
6 – Explique a origem do desprezo e da vingança a partir do pensamento de Nietzsche.
7 – Como é a liberdade que as ovelhas oferecem às aves de rapina? Nietzsche concorda com ela? Explique.
8 – Para Nietzsche, o que as aves de rapina devem fazer para voltarem a ser livres?
 
3 – À GUISA DE CONCLUSÃO: UM CONTO PARA NOSSA REFLEXÃO.
Oscar Wilde (1856-1900), no conto O jovem rei, narra a história de um príncipe raptado com apenas oito dias de vida e que cresceu sob os cuidados de uma humilde família de camponeses. Como ele era o único filho que a filha do rei teve, era necessário encontrá-lo para que alguém sucedesse ao rei no dia em que este morresse.
Enfim, este dia chegou e, um dia antes de sua coroação, o jovem rei teve um sonho:
“Pensou que estava numa água-furtada, comprida e baixa, entre o ronrom e o barulho de um grande número de teares.
A frouxa luz coava-se, furtivamente, pelas janelas fechadas com grades e deixava-lhes ver as silhuetas grosseiras dos tecelões, debruçados sobre os seus teares.
Crianças pálidas e de aspecto doentio estavam acocoradas ao pé das enormes travessas.
Quando as lançadeiras passavam como um relâmpago através da urdidura, levantavam pesados batentes e quando elas atingiam o final de seu movimento, deixavam recair os braços, que apertavam o fios, enlaçando-os juntos.
As suas faces estavam minguadas pela fome.
As suas mãos delgadas estavam agitadas e trêmulas.
Mulheres de feições duras e olhos esgazeados estavam sentadas a uma mesa e cosiam.
Um cheiro horrível enchia o local, O ambiente era impuro e pesado; as paredes estavam sulcadas de filetes úmidos. O jovem rei abeirou-se de um dos tecelões, parou um instante a olhar para ele.
O tecelão lançou-lhe um olhar irritado e disse:
  • Por que me estás olhando? És um espião que nosso patrão enviou para junto de nós?
  • Quem é teu patrão? Perguntou o jovem monarca.
Nosso patrão! Exclamou o tecelão com amargura. É um homem como eu. Para dizer a verdade, não existe a menor diferença entre nós, a não ser que ele usa bonitas roupas, enquanto eu visto trapos.
  • O país é livre, disse o jovem rei, e tu não és escravo de ninguém.
  • Na guerra, disse o tecelão, os fortes reduzem os fracos à escravidão e, em tempos de paz, é a mesma coisa. Temos de trabalhar para viver com salários tão miseráveis que morremos quase de fome. Os nossos filhos emagrecem prematuramente e as feições daqueles que amamos tornam-se duras e más. Esmagamos as uvas, mas são os outros que bebem o vinho. Semeamos o trigo, e a nossa arca está vazia, Arrastamos cadeias, embora os olhos as não vejam e somos escravos, se bem que nos chamem homens livres.
  • E isso dá-se com todos? Perguntou o jovem rei.
  • Assim é para todos, respondeu o tecelão, pra os novos como para os velhos, para as mulheres como para os homens, para as crianças assim como para aqueles que sucumbem todos os anos. Os comerciantes apertam-nos e temos de obedecer às suas ordens. Através das vielas sem sol, em que moramos, a Pobreza de olhos esfomeados e o Pecado de faces devastadas os seguem. A Miséria desperta-nos pela manhã até à noite, a Vergonha nos espreita. Mas que te importam essas coisas? Não és um de nós. No teu rosto, lê-se a felicidade.
E afastou-se com ar truculento; colocou a sua lançadeira entre os fios, e o jovem rei observou que a lançadeira estava guarnecida com fios de ouro.
Um grande terror apoderou-se dele e disse ao tecelão:
  • Que vem a ser essa roupa que estás tecendo?
  • É a roupa destinada à coroação do jovem rei, replicou ele. Que te importa isso?
E o rei moço soltou um grande grito, acordou e...
Estava no seu aposento, e, através da janela, contemplou a vasta lua cor de mel, suspensa numa atmosfera cheia de brumas...”7
 
VAMOS FILOSOFAR...
1 – Supondo que você fosse o jovem rei, como usaria sua liberdade a partir da concepção de Sócrates? Isto é, pela razão, o que faria para resolver os problemas expostos no texto e conquistar o bem para o seu país?
2 – Supondo que você fosse o jovem rei, como usaria sua liberdade a partir da concepção de Nietzsche? Lembre-se de que os seus instintos vitais precisariam ser valorizados.
3 – Relacione a filosofia de Nietzsche à seguinte passagem do texto de Oscar Wilde: “Na guerra, disse o tecelão, os fortes reduzem os fracos à escravidão e, em tempos de paz, é a mesma coisa”8. Nietzsche considera que os fortes escravizaram os fracos? Explique.
4 – Faça uma redação de seus atos no primeiro dia de sua coroação como o jovem rei. Escolha se agiria de acordo com sua razão ou de acordo com seus instintos.
SUGESTÃO DE ATIVIDADES
  1. TEXTO COMPLEMENTAR
O problema de Sócrates
“Dei a entender com o que Sócrates fascinava: ele parecia ser um médico, um salvador. É necessário indicar ainda o erro que havia em sua crença na ‘racionalidade a todo preço’? – é um auto-engano dos filósofos e moralistas pensar que já saem da décadence ao fazerem guerra contra ela. O sair está fora de sua força: mesmo aquilo que escolhem como remédio, como salvação, é apenas, outra vez, uma expressão de décadence – eles alteram sua expressão, não a eliminam propriamente. Sócrates foi um mal-entendido; a inteira moral-da-melhoria, também a cristã, foi um mal-entendido... A luz do dia mais crua, a racionalidade a todo preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo resistência aos instintos era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença – e de modo nenhum um caminho de retorno à ‘virtude’, à ‘saúde’, à felicidade... Ter de combater os instintos – eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, felicidade é igual a instinto”.
NIETZSCHE, Friedrich. “Crepúsculo dos ídolos (§ 11)” in Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1 edição, 1974, p. 338.
  1. TRABALHO EM GRUPO

Recolha imagens sobre pessoas usando sua razão e seus instintos vitais; em seguida, monte um painel expondo, de um lado, o conceito de liberdade de Sócrates com imagens que correspondam a este conceito. De outro, o conceito de liberdade de Nietzsche com imagens que correspondam a este conceito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRENECHEA, Miguel Ângelo. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2000.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2 edição, 2002.

MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Editora Moderna, 4 edição, 1996.

MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche. Berlim: Walter de Gruyter, 1971.

NIETZSCHE. Friedrich. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2 edição, 2000.

_____. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

_____. Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1 edição, 1974.

PLATÃO. A República. Tradução de Leonel Vallandro, Porto Alegre: Editora Globo, 1964.

_____. Diálogos. Tradução de Jorge Paleikat, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d.

WOLFF, Francis. Sócrates: o sorriso da razão. Tradução de Franklin Leopoldo e Silva, São Paulo: Brasiliense, 1982.

1 A mãe de Sócrates era parteira e Sócrates também considerava-se um parteiro, mas de idéias: como ele acreditava que elas estavam nas próprias pessoas, sua atividade consistia em interrogá-las até que as idéias nascessem em suas mentes. Esta atividade genuinamente socrática ficou conhecida como maiêutica..
2 NIETZSCHE, Friedrich. “Fragmento póstumo (1885, 38 [12])” in Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, 1 edição, 1974, p. 405.
3 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 39.
4 Op. Cit., p. 38.
5 Op.cit, pp. 36-37.
6 Este é o subtítulo do livro Ecce Homo, de Nietzsche.
7 WILDE, Oscar. O jovem rei. Tradução de José Maria Machado, São Paulo: Clube do livro, 1963, páginas 14, 15 e 16.
8 _____. Op. cit., p. 15.

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Título:A LIBERDADE ENTRE A RAZÃO E OS INSTINTOS
Tipo de Conteúdo:artigo
Autor:Anderson Alves Esteves
Disponível em:http://www.consciencia.org/materialanderson4.shtml
Local:Brasil
Fonte:Conciência Org
Palavras-chave:filosofia, quinto ano, educação, liberdade, razão
Acesso em (data):09/03/2009
2009-08-26T18:16:41Z
Data:2009-08-26